Cesário Verde

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Sonetos

 

   
 

 

PRÓ PUDOR

 

Todas as noites ela me cingia

Nos braços, com brandura gasalhosa;

Todas as noites eu adormecia,

Sentindo-a desleixada a langorosa.

 

Todas as noites uma fantasia

Lhe emanava da fronte imaginosa;

Todas as noites tinha uma mania,

Aquela concepção vertiginosa.

 

Agora, há quase um mês, modernamente,

Ela tinha um furor dos mais soturnos,

Furor original, impertinente...

 

Todas as noites ela, ah! sordidez!

Descalçava-me as botas, os coturnos,

E fazia-me cócegas nos pés...

 

 

 

 

LÁGRIMAS

 

Ela chorava muito e muito, aos cantos,

Frenética, com gestos desabridos;

Nos cabelos, em ânsias desprendidos

Brilhavam como pérolas os prantos.

 

Ele, o amante, sereno como os santos,

Deitado no sofá, pés aquecidos,

Ao sentir-lhe os soluços consumidos,

Sorria-se cantando alegres cantos.

 

E dizia-lhe então, de olhos enxutos:

– “Tu pareces nascida da rajada,

“Tens despeitos raivosos, resolutos:

 

“Chora, chora, mulher arrenegada;

“Lagrimeja por esses aquedutos...

–“Quero um banho tomar de água salgada.”

 

 

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A FORCA

 

Já que adorar-me dizes que não podes,

Imperatriz serena, alva e discreta,

Ai, como no teu colo há muita seta

E o teu peito é peito dum Herodes,

 

Eu antes que encaneçam meus bigodes

Ao meu mister de ama-te hei de pôr meta,

O coração mo diz – feroz profeta,

Que anões faz dos colossos lá de Rodes.

 

E a vida depurada no cadinho

Das eróticas dores do alvoroço,

Acabará na forca, num azinho,

 

Mas o que há de apertar o meu pescoço

Em lugar de ser corda de bom linho

Será do teu cabelo um menos grosso

 

 

 

 

MANIAS

 

O mundo é velha cena ensangüentada.

Coberta de remendos, picaresca;

A vida é chula farsa assobiada,

Ou selvagem tragédia romanesca.

 

Eu sei um bom rapaz, – hoje uma ossada –,

Que amava certa dama pedantesca,

Perversíssima, esquálida e chagada,

Mas cheia de jactância, quixotesca.

 

Aos domingos a déia, já rugosa,

Concedia-lhe o braço, com preguiça,

E o dengue, em atitude receosa,

 

Na sujeição canina mais submissa,

Levava na tremente mão nervosa,

O livro com que a amante ia ouvir missa!

 

 
 

 

NUM TRIPÚDIO DE CORTE RIGOROSO

 

Num tripúdio de corte rigoroso,

Eu sei quem descobriu Vênus linfática,

– Beleza escultural, grega, simpática,

Um tipo peregrino e luminoso. –

 

Foi lâmpada no mundo cavernoso,

Inspiradora foi de carta enfática,

Onde a alma candente mas sem tática,

Se espraiava num canto lacrimoso.

 

Mas ela em papel fino e perfumado,

Respondeu certas coisas deslumbrantes,

Que o puseram, é céus, desapontado!

 

Eram falsas as frases palpitantes

Pois que tudo, é meu Deus, fora roubado

Ao bom do Secretário dos Amantes

 

 

 

 

HEROÍSMOS

 

Eu temo muito o mar, o mar enorme,

Solene, enraivecido, turbulento,

Erguido em vagalhões, rugindo ao vento;

O mar sublime, o mar que nunca dorme.

 

Eu temo o largo mar, rebelde, informe,

De vítimas famélico, sedento,

E creio ouvir em cada seu lamento

Os ruídos dum túmulo disforme.

 

Contudo, num barquinho transparente,

No ser dorso feroz vou blasonar,

Tufada a vela e nágua quase assente,

 

E ouvindo muito ao perto o seu bramar,

Eu rindo, sem cuidados, simplesmente,

Escarro, com desdém, no grande mar!

 

 

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