Logo à noite, às onze e meia...

 

1 -  O sinal tarda... Sim, as horas vão caindo trôpegas no poço sem fundo do tempo, com uma ressonância oca, ao mesmo tempo em que se colam ao negrume que se apossa do espaço. Pinceladas de Nankin esboçam as copas das mangueiras que, sabe, existem ali à sua frente, do lado de lá da estrada. Sabe também que os outros estão entre aquelas sombras, à espreita, e que o chefe está entre eles.  A estrada, larga e clara, deixa um riacho na noite, indo terminar onde começa o jardim da casa. Velho pavilhão de madeira, calmo, solitário e velho, que conhece de vista mas agora não consegue enxergar. Estará lá o quinto e último homem, com a missão de assinalar o momento em que a acção deve ter início.

Mas o sinal tarda... Da hora marcada, já refugiada no tempo ido, resta unicamente o frio do cacimbo e, pouco a pouco mais, uma intenção amodorrada... Os morcegos cruzam um céu que parece não existir, tão distantes as estrelas, e tão pálidas, indo fazer restolhada nas folhas das mangueiras antes de se pendurarem balançando-se. São a única nota de vida, no mundo macambúzio e grávido de  ruídos insólitos que o cerca e o deixa arrepiado. Depois,  imagina-os, de cabeça para baixo e asas encolhidas, os morcegos espiam-no do alto dos galhos, chiando como ratos assustados. É quase imperceptível o sussurro das vagas que chega, grave, distante, da praia da Missão, empurrado por um vento intermitente para os lados do cais, na parte Este da cidade, arrastando ainda consigo as migalhas do pensamento distante.

Treme. Está desejoso de ver que, pelo não fazer, se estilhacem, as ridículas leis da turma. Não sabia o que estava ali a fazer, não sabia sequer se o quereria saber. Porém sabe-se impotente, procurando subterfúgios para esquecer a sua rápida aquiescência, a sua permanente resignação às regras outros. Por fim, vê-se a resmungar para consigo:

-         Uma boa cigarrada afasta o frio. Olá se afasta...

- Sim, mas... - murmura-lhe ao ouvido a voz do chefe, chegada da lembrança das regras a não quebrar – só que não é permitida a boa cigarrada....

- Ora bolas! Então o que se pode fazer? – pergunta à voz.

- Nada – responde-lhe esta – Nada... esperar apenas.

A voz do chefe irrita-o sempre. Mais agora que a ouve em si e o sabe do outro lado, na escuridão. “Nada de tabaco! Nada de tabaco! Nada de tabaco! – Ok... Ok... não querem lá ver....” o chefe deve estar à coca... o melhor é mesmo cumprir. Mas que está uma porra dum frio, ninguém pode negar!

O silêncio eterniza-se e, como o frio, infiltra-se-lhe no corpo. De repente pressente que está só, que não há ninguém do outro lado... Mas, que ruído foi este? Ná, nunca fiando... O medo de ser submetido a novo julgamento no seio daquele bando de idiotas deixava-o gelado, adensando  o frio da noite. O melhor era cumprir isto...  Homem quase feito nos seus catorze anos, nem ele próprio sabia encontrar a razão para o pânico que tomava conta de si no contacto com os outros. Que costumes terão eles? São todos estranhos, não conhece um deles sequer! Cheios de sorrisos supostamente cínicos e com pontas de cigarro ao canto da boca, como os teddy americanos, como nos filmes do James Dean...palhaços!

Limita-se a esperar. Que algo aconteça. Já nem sabe há quanto tempo ali está. Tenta esquecer o cigarro que dormita no fundo do bolso... Sim, que ele fuma como os outros! Só que nunca lhe passaria pela cabeça andar com uma beata apagada no canto da boca... São todos uns tigres, eles... a mostrar os dentes quando chegam a veteranos.... Devam ser veteranos há mais de um século, pela idade que já têm!!  - E o raio de frio que não acaba... Bom, o melhor é recapitular o plano:

- Tu vais para o lado esquerdo da estrada, às dez horas. Vais sozinho para que não desconfiem. Há lá umas mangueiras e uma vala. Ficas na vala. Quando ele acender a lanterna (e aqui o chefe apontou para o quinto elemento), arrancas. O portão está só encostado... é fácil. Depois é mesmo em frente. É canja!

- E vocês? – atrevera-se a perguntar.

- Nós? Nós vigiamos... não é Sorna?

- Hum, hum...

- Não há cão?

- Ná, pá, nada de nada.

- Mas... isto não pode ficar para amanhã? Hoje vai um filme bestial... – ainda tentou.

- Ná, menino, deixa-te disso. É para hoje, às onze em ponto!

Em ponto.... em ponto uma merda! Que raio de pontualidade, a deles. O frio quase o anestesia, mas ainda não o suficiente para que ele o deixe de sentir. Por momentos cai numa apatia esquisita, num desinteresse pelo que pode estar para acontecer-lhe, distante como o sussurrar da vaga, na praia da Missão. Arrelia-o que seja assim, tão subserviente, tão submisso. O sono começa a inquieta-lo, a pisar-lhe as pálpebras com impaciência. É uma tarefa dos diabos esta de o convencer a ficar quieto, no seu canto. Mas o sono pisa e torna a pisar. Depois fala-lhe ao ouvido, baixinho, nas suas falinhas mansas... Raios partam o Guinchos mais a sua penugem debaixo do queixo... Se está na casa, que diabo, não lhe custa nada acender o raio da lanterna... ou sim, ou sopas Bolas! ... É bem capaz de estar na maior das sornas, já ferrado no terceiro ou quarto sono, o tal quinto homem... Não, duvido que esteja... Um tigre é um tigre e o chefe é uma besta ainda maior. Não há nada pior que esta inquietude... Aonde irão as onze! Se calhar também já lá vai a meia-noite! Se os velhos já chegaram do cinema, estou feito... “Que mania tinha de me fazer ainda bebé, aquela mãe...” E a luz, que nuca mais aparece... Acende-te luz, vá lá.... acende-te... Merda! Acende-te de uma vez por todas!

O sono continua a esvoaçar em seu redor, ora mais próximo, ora mais distante, mas sempre presente e calcando cada vez com mais força, fazendo com que lhe doam as pálpebras, de tanto as segurar. O sono é indestrutível e simultaneamente cativante. Veio-lhe a ideia: - e se executasse o plano sozinho? Seria fácil... e a sua audácia alcandora-lo-ia a um ponto mais alto que o deles. Ficavam a saber que sou ainda mais tigre que eles... e nem há cão!  Sorri, a este ponto. Como aquela ideia lhe fazia bem ao íntimo!  Subitamente enerva-se. Dá mil tratos à imaginação e aos nomes mais estapafúrdios... Volta a sorrir mas logo entristece, perante a missão. Também, que ideia mais chata aquela, de aparecer no Liceu com uma coisa daquelas... Tampa de sanita... Só mesmo de tipos como aqueles... Ainda se fosse a antena de uma carro, sei lá, até um tampão de roda... Com o cinema a funcionar e quase toda a gente  lá, seria fácil. Afinal é tudo indecente!... Ando pr’áqui aos gambozinos... será que é isso? Gambuzinos... Gambuzinos.... O gesto todo faz-favor do Guinchos...

- O quê? Em tua Casa?

- Sim, não penses que sou parvo... Os velhos andaram todo o dia a chatear-me por causa das notas. É uma desforra! ... sabes, não é?...

- Ó pá.... mas isso é porreiríssimo!

Até se rira, quase dera pulos de contente, ao fim e ao cabo, com tanta facilidade. Passara até a julgar o Guinchos com menor severidade... Agora, porém, com esta questão dos gambozinos a bailar-lhe na cabeça, tudo lhe cheirava a esturro... E onde já vão as onze em ponto!! E fui eu perder aquele filme fantástico... qual era o artista? Eh... é aquele, Steve qualquer-coisa, o que também entra noutro filme, passado todo à volta de uma mesa. Fazia de jogador de cartas. O tipo é bom... deve ter sido bestial, c’os diabos...

Absolutamente alheio às proibições do momento, levou a mão ao bolso, encontrou o cigarro e logo o levou à boca, acendendo-o de imediato. Um fulgor breve iluminou-lhe o rosto moreno com o passar do fósforo pela lixa da caixa. Aquele barulho de nada teve o condão de o despertar, dando por si naquele sítio estranho. E tudo se alterou. A modorra afogou-se nas vagas do medo que o tomou inteiro. Treme e apressa-se a apagar o cigarro, com a imagem do chefe a varrer todo o resto. E logo depois a luz rasgou a escuridão, jorrando sobre o jardim, atirada de uma das janelas do velho pavilhão. O SINAL!!

Retesam-se-lhe os músculos. O corpo dormente esquece a dormência. O sono retalha-se e esvai-se no escuro, espalhado à sua volta. Está preparado para correr. Com os olhos fixos no portão, não pensando em mais nada senão em cumprir o plano, corre.

 2  -  O velho Mendes, pai do Guinchos, tosse – como sempre lhe acontece desde que há uns anos uma maldita tuberculose o apanhou – antes de fazer funcionar o autoclismo. Que coisa, raio de necessidade aquela que lhe aperta a bexiga todas as noites às onze, como um relógio com garras. Tem no rosto amarelado de pessoa doente uma expressão de cansaço. Parece mesmo estar muito doente.  Tem sido sempre assim depois daquilo. Tosse uma segunda vez e arrasta-se, corredor fora, nas suas pantufas cambaias. Atrás de si a luz derrama-se para o soalho, abundantemente. O velho Mendes volta a tossir. Não consegue fazer mais, à noite, que tossir. Atento às inconveniências da velhice chegada, pensa: - nos meus tempos...  Está fora do seu tempo, portanto, o velho Mendes. A luz eléctrica não será do seu tempo, posto que de a apagar se esquece. Não... afinal não a esquece. Parece reconhecê-la porque estaca de súbito. Dá meia volta e, à porta do WC atira toda a casa para a escuridão. Tacteando, procura nas paredes a orientação que repentinamente o abandonou. Arrasta de novo as pantufas, no corredor, a caminho do quarto. Tosse de novo, antes de entrar e procurar a cama onde, sob as cobertas, o espera o corpo ainda quente e rijo da sua “velha” Carolina, como há dez anos, como há vinte anos até. Não, não tão rijo como então. Um pouco mais flácido mas muito menos que o seu próprio, cada vez mais velho, cada vez mais flácido, de ano para ano cada vez menos... “nos meus tempos – pensa ele – oh, nos meus tempos...” E, envolto nestes pensamentos, levanta o cobertor, quando o estardalhaço vindo do quintal lhe tolhe o movimento. Põe-se de ouvido à escuta. Tarzan, o seu cão de guarda, ladra furiosamente, arrastando as correntes que o prendem perto do portão. Ele ouve-o perfeitamente, mesmo sendo como é, quase surdo.

- Larápio maldito que já te tas canto...- Voltou ao corredor e ao quarto de novo, de supetão, nervoso, a olhar para a mulher, sentada na cama, de olhos esbugalhados, desperta.

- O que foi, homem?

- Nada, mulher, nada...

- Mas... se não é nada, para que queres então tu a caçadeira, Santo Deus?

- Para nada... dorme, dorme.

- O que vais tu fazer?

- Nada, dorme – repetiu, na maior desorientação.

- Ai meu Deus, Virgem Santíssima...

- Bolas!

E o velho Mendes volta a sair do quarto como entrara, repentinamente.

- Cuidado com o ombro, homem... ai meu Deus -.diz-lhe a mulher, que veio espreitar à porta do quarto.

Com a caçadeira debaixo do braço, mil pensamentos na cabeça repleta de cãs, o velho Mendes tem apenas um palavrão sonante, bem na ponta da língua, quando pensa no filho que, como de costume, estará a dormir sem se ralar minimamente com o que se passa à sua volta. E pensando nele deixa escapar o palavrão. Está furioso. Nunca fora capaz de dar um tiro que fosse, em condições, com a porcaria daquela arma – daquela e das outras todas –e logo agora lhe havia de calhar isto... e o raio do ombro.... Definitivamente, está furioso. Cada vez mais furioso.... não é ele que o faz. É a fúria, ela mesma, que abre a janela do lado do quintal e não ele. Ao ouvir os tiros, um a seguir ao outro, com os sequentes coices no ombro que traz magoado, o velho Mendes lança para o espaço escuro um urro  - ouvido quiçá a quilómetros de distância - que o faz estremecer de susto e o deixou estatelar-se junto à janela.

 3  -  Espalmado contra o muro, do lado de fora, mais parece um pedaço de reboco aguardando que a colher de pedreiro o alise e espalme ainda mais. Treme desamparado. Traz o coração cá muito em cima, junto à garganta, quase na boca. Vibra de alto a baixo. O medo varre-o com um vento variável, vindo de todas as direcções, soprando dentro de si também, como se ele se tivesse transformado numa daquelas nuvem de turbulência, que sem aviso descarregam raios e coriscos sobre o mundo. Tem diante dos olhos a dentuça branca do canzarrão, enorme,  prestes a estraçalha-lo ali, mal consiga rebentar as correntes que o prendem a qualquer ponto obscuro.... Jardim... pois sim.... e onde estão as flores?  E ali está ele agora, pregado ao muro, altíssimo mas mesmo assim transposto, absolutamente perdido, despido de ideias, tendo próxima aquela fera, a um  passo do portão – efectivamente aberto - por onde momentos antes havia entrado, muito paulatinamente, excitado mas sem grandes medos... O muro é alto e ele saltou-o!! Mas ele arfa e não tem tempo – nem sequer disposição – para pensar na sua proeza. Mas o portão está aberto... poderia ter saído por ele como entrara...E o cão? Pensa em muitas coisas ao mesmo tempo, que é como quem diz: Vêm-lhe muitas coisas à mente mas não pensa em nada... Limita-se a tremer, não pára de tremer. Ouve o cão a ladrar furiosamente do outro lado do muro. Do lado de lá do muro e acorrentado, raios! Os olhos esbugalhados vão pendulando de lá para cá, entre a janela aberta e de onde a luz agora se derramava – não a de há pouco – e o mangueiral mergulhado na escuridão, dando por si a invejar os morcegos que aí mantém a sua chiadeira fantasmagórica. Com que então não havia cão.... filho da puta!

De repente, PUM! PUM !, dois disparos vindos da janela. Os tiros desfizeram a malha das suas cogitações, como se lhe tivessem acertado em cheio. O coração, que entretanto havia retomado o seu lugar, voltou a vir por aí acima, pondo-se a bater à beira da boca. “Estou tramado!” – foi o que lhe veio ao pensamento.

Ao ouvir o urro que se seguiu aos tiros, deixou de ser ele, perdendo por completo a noção das coisas e do tempo. Ouviu um barulho diferente vindo da janela e a voz de uma mulher, dizendo: - Eu não te dizia para teres cuidado com o ombro?

E deu consigo a correr desalmadamente, atravessando o mangueiral uma vez transposta a estrada e saltada a vala onde tanto esperara, deixando para trás um rasto sonoro feito de ramos secos que chiam como os morcegos e se partem com o estalido seco das culatras a serem postas no lugar... Corre cada vez mais e, de repente, volta a ver luz, muita luz. É a cidade que vem ao seu encontro, em seu socorro. Percorre todo um quarteirão ainda a olhar para trás. O seguinte já  o percorre mais lentamente, arfando sempre. Traz consigo um ar de quem vem de qualquer parte pouco aconselhável, de outro mundo. Quando chega ao quarto quarteirão já está absolutamente em si. Até procura assobiar e tenta mostrar o máximo de descontracção aos que se cruzam consigo, vindos do cinema. Cumprimenta-os, ainda que os não conheça de lado algum. Tudo nele é aparentemente normal. O sentido a rua, porém,  não o é. É oposto ao dos outros que, esses sim, vem do único sítio onde na cidade se pode ir à noite, o cinema.  Todos eles passam por si risonhos, falando e gesticulando . “Deve ter sido mesmo um bom filme, raios!” - pensou. Passou um grupo, agora passa outro. Depois vê-os. Aos quatro! Abana a cabeça... não devo estar bom da tola... Mas, raios, são mesmo eles! Acena-lhes. Conversam e gesticulam como toda a gente. “Devem ter cavado e misturaram-se com estes para despistar” De repente ouve o  que dizem, mas é como se eles não existissem:

- Viste a gaja que apareceu antes do primeiro intervalo? É bestial, pá . – dizia o Guinchos

- Ora... a outra que ficou com o gajo é que me levava à cama – rebatia o chefe.

- Uma ova! – disse um dos outros – a primeira era muita boa!!

- Não me lixem... – voltou o chefe...

Absurdo! Que raio.... Não pode ser... logo os quatro? Então.... A verdade abateu-se sobre ele e, instintivamente atirou-se para uma entrada de prédio, procurando colar-se ao escuro. “Aqui estou eu, ainda por cima, feito parvo...” Espreita. O grupo vai a dobrar uma esquina... Apetece-lhe persegui-los e desancá-los aos quatro, tal a raiva. Mas a verdade toma-o de novo. A verdade e a prudência. Os quatro deitam-lhe o rabo do olho. Já na transversal, fora do seu campo de visão, rompem em gargalhadas. Imagina-os agarrados à barriga, a rebolarem-se de riso e cerra os dentes. Os passos são dados agora de dentes cerrados. – Que vergonha vai ser amanhã, no Liceu... Vai acabrunhando quando chega à transversal seguinte, onde mora. Geme: - Oh, não...

Sim, a sua casa tem luzes acesas. À sua frente, debruçadas para a rua, duas expressões diferentes o aguardam. Uma, carrancuda, augurando tempestade, a outra reflectindo inquietação pela sua ausência.

Para trás fica o gargalhar dos imbecis veteranos. Mais em baixo, na fachada do Município, o relógio marca as onze e meia.  

EGJore  -  Porto Amboim, 1967


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