Durante a noite...
-
Ah Ah, não quero.... – dizia a mais nova, mirando a outra de
esguelha.
Esta,
mais velha, sabida e de rosto impassível teimava, com o pensamento na
comissão que havia de receber pelo acerto do engate...
-
O branco é bom... vamos na venda...
E
eram estas as expressões verbais que, no quimbo, de noite, elas travavam.
Tentadora, a proposta que a outra trazia....
-
O branco paga vinte...
-
Ah Ah, eu não quero...
A
mais nova, Kacessa, de si para si negava, como se consigo não fosse,
declinando o convite. Não a pensar que o apetite faltava, nem que lhe
sobrava o repasto... Porém, seu homem viria. E depois? Se alguém lhe
contasse, por pouco que fosse, se alguém lhe falasse do passo que dada...
que mau que seria!
-
Ah Ah, eu não quero – insistia, falando mais para si, querendo
convencer-se – eu não quero....
Porém,
dentro, no ventre, a vontade lá estava, chamando, chamando baixinho,
sussurrante com a mansidão que o desejo sempre vestia. A esteira vazia,
com falta de homem, lá estava também, escondida na cubata vazia de seu
negro pastor, fria de há muito não ter. Mas, ainda assim, ela não
queria... Se queria, temia... No mesmo!
E
a outra esperava, onça espreitando a presa, vida feita de muito
engajamento, hábito feito, que a velhice solitária para mais não
servia... Como sempre era seu treino, esperava: de dia, costumava esperar
a noite... De noite, outras coisas. A sua vida fazia-se de esperas, uma
cadeia de esperas sem fim. Ninguém estava para as ouvir e ela insistia;
porque a fogueira não ouve e, mesmo que as ouvisse... morreria daí a
pouco.... Falaria? Jamais!!
A
mata cantava a sua sinfonia nocturna, nas vozes dos grilos, no farfalhar
das folhas quebrando o silêncio... e a velha ia tecendo sua teia, qual
aranha. Das duas, uma cantava
também, uma canção sugerida pela
banda da noite que era, uma canção chamando alguém que não vinha,
chorando a mocidade que estava e passava assim, nas horas vazias da
espera.
Ela
cantava, querendo afastar a tentação que a outra trazia na ponta da língua,
no fio da teia tecida ainda agora... No ventre contudo, a vontade morava,
desejo crescendo, fremindo e crescendo através da nostalgia da canção
até, crescendo quando a lembrança de homem tocava, na ponta dos dedos, a
esteira vazia de há muito. E a farinha também, que já estava
faltando....
-
O patrão é bom... – ecoava a voz da kota, lá longe e aqui,
caminhando na raia do silêncio quebrado, entrando no sonho de amor que
estava cantando.
Calou-se,
ficou sem dizer nem cantar coisa alguma. E a canção refugiou-se nas
vozes da mata, escondida no escuro da noite já vinda, de notas soltas lhe
chamando. Queria ser forte, na força que fosse do medo a chegar. Pensava:
Seu homem, pastor, andava por longe nem ela o sabia, com os bois do outro,
do patrão da venda. E ela? Ela a ligar-se no sussurro às vozes da noite,
chamando, chamando... ela a pensar nele e no outro... que coisa faria?
No
quimbo, nas cubatas emudecidas desde as noites já idas tão longe, o luar
batia ténue, de uma lua perdida nos fins do horizonte, fazendo uma sombra
mais forte e mais longa, na sombra que atapetava o chão despido.
Aceitando o convite, Kacessa entrou no sonho. Quando voltou, gargalhava.
Calou-se e mirou a lua já se escondendo. Lá estava, no gomo agora que
fora quitanda cheia, magra, como se a ela chegasse também a saudade
sentida. Que coisa faria? Seguir a mais velha à loja do branco? Deitar o
corpo cansado de esperar na esteira dura e vazia? Ou só cantar mesmo? Não...
melhor mesmo será ficar no quimbo, sozinha olhando a mata, na esperança
de vê-lo chegar, olhando a morte da fogueira pouco a pouco acontecendo,
comer o pirão feito para seu homem que não vinha...
O tempo, vadio no seu próprio quimbo, corria à solta, sem esperar
ninguém. E o vento trazia os perfumes do mato, fustigando levemente as
cubatas, insinuando ele também a falta de qualquer coisa. E a kota
insistia, falava como se estivesse alguém a ouvi-la, para dentro de si, já
que a outra parecia estar andar longe: Que o homem branco daria a peça
inteira de chita bonita.... Oh! Que linda seria Kacessa, assim bem
vestida, esperando seu homem pastor... Mas, que coisas mais queria?
No
escuro das covas os grilos desfilavam afinados suas canções penetrantes,
contentes com o calor que a terra guardara do dia passado. E tudo parecia
cantar, na noite apressada, melodias pesadas do silenciar dos homens. Os
segundos passaram.... Minutos? Horas?
Horas céleres no interesse da velha,
minutos lentos na dúvida da nova, tudo misturado, em redor da
fogueira.
O
escuro crescia, adensando-se mais e mais com a descida da lua, cobrindo
com um só manto todo o quimbo. Como a lua, a fogueira já definhava,
cansada, desfazendo-se nos estalidos de lenha virando carvão em brasa,
agonizando na cinza que se acumulava aos pés das duas, arrefecida e morta
paralelamente com a noite passante..
Dentro,
na mente, Kacessa, a mais
nova, criava argumentos, num interesse crescente pelo assunto tratado. –
Vinte dá p’ra comprar o quê? – e cogitava na hipótese de pano novo,
bonito, esquecida já da negação de há pouco, ausente de si. Os panos
que tinha andavam bem rotos, como céu no dia da chuva, feito de retalhos.
Então gerou uma resolução, furtivamente alimentada depois na ausência
da sua razão. Cresceu a resolução de tal forma que, quando ela deu
conta, já estava aceitando. Bom, e que fosse? Que coisa faria? Iria à
venda do branco, daria de ombros no medo que tinha, esqueceria o
pensamento que lhe falava na volta de seu homem... ele não viria!! Então,
amanhã, poria o pano bonito e aguardaria com ele a volta do pastor.
Assim
pensando quase tocava
um sonho feliz quando disse à kota que estava de acordo.
-
Eu vou contigo à venda.... – sussurrou.
A
outra suspirou, aranha saboreando a vitória difícil depois de muitas
teias tecidas, logo aprontando a caminhada.
-
O branco é bom.... vais ver que é. Vai-te dar bom dinheiro. – E
foram as duas, roçando seu panos baratos no mato rasteiro, entrando na
noite, carreiro além.
A
casa erguia uma silhueta confusa contra a escuridão do céu, já na falta
da nesga de lua que havia. Perto dela pararam as duas mulheres e, dando um
passo, a vencedora foi quem
primeiro falou:
-
Espera aqui um pouco – fez sinal para que Kacessa esperasse e foi-se,
encostada à parede, até se perder na esquina primeira.
Kacessa
esperou vendo as silhuetas se movendo à sua volta, toscas figuras das
árvores mais próximas abanadas pelo vento. No escondido da noite
passou as mãos por seu corpo jovem, esbelto, que a kota sabia do agrado
do homem da venda. Nas ancas largas guardava vozes de amor, falando, lhe
chamando, tudo escondido no pano barato que nada dizia por solto e largo.
As mãos ainda subindo por dentro dos panos, pararam na quentura dos
seios, tremendo. Seios firmes e cheios, soltos ao sabor baloiçante dos
passos. Aconchegou-os, juntando-os com as palmas das mãos, ansiando
receber nas mãos todo o calor que deles brotava, pensando já em agradar
ao dono da venda, isso sim, para satisfazer desejo nascido e ganhar pano
bonito e fuba, que fuba também já estava faltando. Suspirou, pensando em
seu homem que não vinha e lhe faltava na esteira. Voltou a suspirar,
agora de desejo escaldante, assanhando-se com o pensamento assim a cair em
homem.
Sobressaltou-se
entretanto e, ao ouvir insólito ruído, teve visões de terror por um
lapso de tempo, retornando ao sossego quando os viu. Chegavam, a kota
puxando uma fumaça de um cigarro escondido entre os dois – oferta do
homem por certo... – cigarro conquistado, prémio por uma cambulação
acertada. A ponta vermelha bailou entre os vultos que se aproximavam,
denunciando um e outro passo na sua direcção. Perto a mais velha
despediu-se:
-
Té manhã, patalão. Roçando por ela e sorrindo-lhe, já
desaparecia pelo carreiro de outro quimbo.
Ficaram
então os dois na noite, quietos e calados por breves momentos. Os grilos,
algures escondidos, falavam já mansamente conversas de amor ardente e
quase consumado.
-
Anda – disse-lhe ele, na sua linguagem. Depois repetiu na dela –
tuendi.
-
Ah Ah! – fez ela, escapando-se-lhe dos braços abertos, recuando e
sorrindo nervosa, fazendo-se difícil mas querendo já muito.
Mudando
de jeito, ele esperou o serenar dela:
-
Como é mesmo teu nome? Maria?
-
Hum Hum... negou ela.
-
Então? – insistiu ele
O
resultado foi igual. Kacessa teimava em calar-se, mãos ainda escondidas
na blusa, ainda aconchegando os entumecidos seios. Agora era ele que
tomava o lugar da mais velha, tecendo sua teia, esperando, teimando. Ela
limitava-se a recuar – mas pouco, não fosse ele deixar de querer –
fugindo-lhe. Logo porém lhe chegou a vontade de agradar ao homem, feita
desejo. Por isso parou. Tinha um rir baixinho e trémulo que tarava o
homem. Queria era mesmo deixá-lo assim, sem jeito, sem poder mais, para
ganhar dele muitos panos bonitos.
Foi
então que este namoro se quebrou, no farfalhar de um mutiati se
ampliando no silêncio bruscamente feito e chegado até eles, vindo do
sono do mundo.
Quando
voltou a procurar-lhe a presença, já ela se encostava a si, deixando-se
apertar. E foi mansamente agarrada, levada por ele, enquanto o diabo já
estava dentro de si, lhe sorrindo. E dentro sorriu também, pronta para
tudo o que o homem quisesse. Por fora suspirava assustada pela força de
ser esta a primeira vez com homem de outra raça. As mãos do branco,
insinuantes e quentes, entraram na blusa numa incursão intima e, numa carícia
brusca mas meiga tomaram o lugar das suas. Então notou que não lhe
ficavam réstias de mágoa. Era tudo só desejo, mágoas e incertezas
esquecidas, fora do circulo dos braços que prendiam, afastadas pelas mãos
infiltradas. Ao entrarem em casa ela olhou uma última vez a noite
acontecida. Deixou-lhe entregue o medo e entrou, sorrindo e condescendendo
em tudo o que ele queria...... coisa tão simples, tão fácil, tão doida
e tão boa.......
-
Como é teu nome? – tornou ele
-
Kacessa – disse baixinho, receando que a noite lá fora o
soubesse e o levasse aos ouvidos do povo dormindo.
O
quarto ficava a seguir. Lá era de dia, mesmo de noite, por força do sol
que descia do candeeiro e se espalhava no chão. E era grande, do tamanho
de duas ou mais cubatas, e quente, cheio de coisas estranhas, bonitas, que
ela tocava mas não conhecia.
-
Cubata bonita... – disse para consigo.
Estava
contente agora que via aquelas coisas espalhadas pelo quarto, bonitas, sem
perceber qual a utilidade de cada uma mas gostando de pensar que poderiam
ser suas se agradasse ao homem da venda – era o sussurro da vaidade
tecendo em seu ouvido.... Sonhava com tudo, sonhando com ele que a havia
deixado para desaparecer na porta que ligava a outro lado qualquer. Só
acordou quando não estava mais só. Ele voltava, só com roupa em baixo,
troco branco sem nada. Olhou e aquele corpo branco, não lhe dizendo nada,
fascinava-a na ida mas trazia o receio na volta. E o corpo chamava-a,
agora deitado, sedento, fremente. Um braço estendeu-se-lhe e ela foi
indo, mansamente entregando-se-lhe, sentando-se junto ao homem. Mal teve
tempo de olhá-lo de lado, já ele a agarrava, abraçando e puxando.
-
Tira isso – rouquejou-lhe, puxando febril a blusa barata. E Kacessa se
lhe ligou, ardendo também, identificados pelo desejo agora comum, quando
se olharam. Num último gesto de protesto, voltou o olhar para o teto, de
onde vinha o resmungo do aparelho que dava sol ao quarto.
-
Tira – disse ao homem, apontando o candeeiro, querendo que a noite se
fizesse como no quimbo, escura e só se entregando aos outros sentidos que
não os dos olhos.
-
Não... quis ele, sorrindo – deixa eu te ver.
Então,
a outra mulher, que vinha já vivendo dentro dela, faminta de homem,
endoidou de vez.... Esperar mais porquê? Que coisa faria? Olhou o homem
deitado e erguendo-se deixou cair a blusa e o pano que se lhe enrolava
à cintura. Fazia-o sem pressa, como se estivesse indecisa ou se
quisesse alucinar o homem que a olhava, louco de tanto querer seu corpo.
Quando de novo se sentou logo foi agarrada e de novo puxada pelos braços
fortes do branco. E sentiu-se tocada em todo o corpo, completamente, e
deixou que ele a tocasse, gostando já... Depois entregou-se-lhe, receosa
primeiro, desvairada depois, apertando-o e gemendo palavras na sua língua.
Então
a calmaria voltou, aragem feita de lassidão roubando lugar ao vendaval do
desejo, com a extenuação, na serenidade do espirito amansado assim. O
homem quis que ficasse e Kacessa deixou que ele permanecesse enlaçado a
si. Felizes um pouco, cada um a seu modo, adormeciam, quando do outro lado
da noite alguém gritou um soluçar amargo. Era um choro que o vendo
conduzia, que entrou pelas frinchas da porta e da janela até ela e a
deixou gelada, trespassando-a no sobressalto do pressentimento. Bem
despertos escutaram o lamento vindo da noite. Logo, batidas leves se
repetiam na porta da rua e o homem deixou contrafeito a calidez do corpo
de ébano ainda entregue à perlífera transpiração do amor, saindo do
leito com o cenho franzido pela contrariedade.
-
Quem é? – perguntou, sentindo pequenos arrepios de medo.
-
Patrão - respondeu da noite o lamento – é Tchicapa...
O
pastor... voltara o pastor, logo hoje, logo agora.... – o dono da venda
estava assustado, um pouco sem saber o que fazer.
Olhou
para o quarto onde a mulher, que ouvira também a voz de seu homem, se
escondia no tumulto das roupas, negra, nua, assustada assim pelo choro da
noite.
O
comerciante chegou-se à porta, atabalhoadamente enfiando as calças.
Entreabriu-a e deparou-se com o corpo pequeno mas forte do pastor.
-
Então Tchicapa – procurou em si as palavras certas – o que queres a
estas horas? - continuou
procurando palavras – Vai
dormir que de manhã falamos... – um rasgo que lhe pareceu inteligente,
concluiu – trouxeste os bois todos?
Pecou
por excesso de gentileza, sentiu-o. Jamais lhe passaria pela cabeça
tratar o pastor como um igual... contudo havia que esconder o quarto
iluminado dos olhos do outro e isso não lhe permitia o à vontade de
sempre. O que mais desejava agora era afastar de si o receio, juntamente
com o pastor. Mas este era como se visse tudo, através das paredes, através
do seu corpo, da porta, de tudo. Via com os olhos da certeza, do saber, já
que no seu rosto sobrava o véu das lágrimas e no seu peito se ressequiam
as ânsias acalentadas durante as noites solitárias da mata. - Eu ver Kacessa... eu ver ela entrar... Os dois homens ofegavam, de causas díspares. Desfez-se a atitude amistosa no comerciante. - ai ele é isso... – pensou.
Depois,
em voz alta disse:
-
Estás
maluco, ou quê? ... então não vês que a tua mulher está no quimbo à
tua espera? Vá, desanda, deixa-me dormir...
-
Ah
Ah – fez o outro.
O
dono da loja procurou ganhar tempo, afastar o pastar e entregar a mulher
à sua própria sorte. Não queria este tipo de confusão agora... Porém,
o pastor recusava afastar-se.
-
Ah
Ah – repetiu.
Na
cama. Kacessa chorava, no medo de ter esperado pouco,
no medo do nada que vinha a caminho. Ouvira os homens e ficou
chorando até a porta bater ao fechar-se. Lá fora, do outro lado da
noite, ficara o pastor seu homem, em cujo rosto os traços ganhavam nova
forma, dura e firme.
O
comerciante voltou ao quarto e nele já não havia nem sombra do desejo já
tido. Apenas uma louca vontade de se ver livre da mulher que o aguardava.
Olhou-a ainda deitada, contraste forte com as roupas de cama, de seios
livres, fartos, ancas largas, lisas colunas de ébano descendo suavemente
até aos pés estragados pelo caminhar descalço. Sobre os dois pairava o
desagrado do embaraço.
Kacessa
já não soluçava. Sentindo bem quão mudada estava a atitude do homem,
como ela mesma estava, triste , despida, estranha em seu próprio corpo.
-
Veste
– disse-lhe ele com rudeza, apontando-lhe os panos em que viera vestida.
-
Ah
Ah – tremeu ela, teimando em não ir, logo se sentindo puxada com rancor
para os limites da sala.
-
Toma,
vai embora.
Estranha,
a mulher recebeu nas mãos nervosas a nota que ele lhe estendia e tremeu
de um frio que vinha de dentro, diferente do frio da noite, ainda nua,
panos esquecidos, caídos aqui e ali, jogados na fúria do amor, passada,
do homem e voltou ao quarto. Enrolou os panos à volta da cintura,
descendo-os depois lentamente no desejo de prolongar o tempo, querendo
fugir do encontro que lhe estava marcado com a noite. Por fim vestiu a
blusa onde um rasgão lembrava a fúria de amor do homem. A blusa logo se
encheu com o seu peito rijo e o peito encheu-se de um pranto calado,
subindo, subindo, ao encontro da boca e dos olhos. Corriam pelo seu rosto
pérolas brilhando à luz do roufenho candeeiro, deslizando perdidas. E
ela pensou na segurança da esteira fria, deixada na cubata que estava
vazia de alguém, vazia de si, perdida para sempre. Pensou no homem
escondido no nada da noite, tão forte, outrora tão bom, o seu homem que
por certo a chorava também. Pensou na acolhida bondosa, quente, do outro,
igualmente perdida. Aprofundou um pouco mais e viu que tudo estava
perdido.
Apertada
pelos dedos que haviam deixado escapar toda a areia de uma vida, a vida de
outrora, a nota de vinte era um papel amarfanhado que logo voltaria à
loja de onde saíra, trocada por fuba, quiçá outra coisa, sem troco na
certa. Todavia, a nota emudeceu o latente remorso no homem que a dera.
Como quem enxota o gato que maça com seu ronronar, ele empurrou-a para o
escuro da noite. Kacessa sentiu que a aragem gélida do desespero lhe
percorria o corpo. Confusa, receava dar o passo seguinte e, na
simplicidade do seu espirito fragilizado, despediu-se o homem:
-
Té
manhã....
Ele
permaneceu calado, apressando-a, tremendo de frio.
Quando
a porta se fechou atrás de si, Kacessa aventurou-se nos caminhos da
noite, sem saber para onde ir. No seu quimbo estaria o homem pastor lhe
aguardando... seria a desgraça. Indecisa, viu-se tacteando o carreiro
percorrido pela mulher mais velha nas horas perdidas, fio claro de areia
nas trevas da noite. Ao longe um cão uivou um lamento pressagioso
chamando a madrugada já. E toda a mata vizinha respondia, no eco se
arrastando no vento.
O
mal, como a morte, não marca lugar nem tempo. Espera apenas. Acontece.
Saiu-lhe o mal a caminho, na figura do homem bom, esperado em tantas
noites, noites e noites de lua e sem lua no fim, de grilos cantando e se
calando.
Dentro
de casa o comerciante suspirou um longo ufff de alívio, consciência já
adormecida. Foi sem estremecer que ouviu o grito de dor rasgando o pano da
noite, estilhaçando o silêncio. Era outra noite que caia, para lá da
noite que ainda era e já agonizava no alvor do dia nascente, ao longe,
manchando a escuridão. Recolheu-se e quase logo adormeceu. Na madrugada os grilos voltaram a cantar a sua sinfonia de um qualquer adeus. EGJore – Moçâmedes, 1966 Logo à noite, às onze e meia...| Durante a noite... | Libelo acusatório |