VIDA FAMILIAR 


6 - ÍDOLOS, CULTOS, MAGIAS E CERIMÓNIAS

 Do contacto com o Muila, fica-nos a ideia de que não presta culto a qualquer ídolo. No entanto, tudo leva a crer que acredita num deus, muito embora se não tenha conseguido averiguar até que ponto e qual a concepção que fazem de tal divindade. Fazem, hoje em dia, uso de várias expressões nas quais Deus está contido, possivelmente por influência da nossa civilização, tais como "Huku iangue Kuatecece" e " Uechi pahé ocunhana Huku tala mapita", que podem ser traduzidas por "Deus me ajude" e "Não faças sofrer a galinha porque Deus te vê", respectivamente, sendo a última utilizada quando alguém está a fazer uma maldade ou simplesmente a matar uma galinha e esta demora a morrer.

Foi dito que o Muila parece não prestar culto a ídolos. Contudo, para além do culto dos mortos, existe aquele prestado ao boi sagrado - ou boi soba - o qual bem pode ser apontado como um ídolo, contrariando tal ideia.

Quando têm preces a fazer, fazem-nas a Deus e aos mortos, podendo estas ser feitas por feiticeiros ou não. As preces ou cerimónias  feitas no centro do Eumbo 19, no local denominado Tchoto  20, são chamadas de Elau 12.

Quanto à magia, ela está profundamente arreigada no espírito do Muila e para cada espécie de magia possuem um agente, como sejam:

-  Onganga 22-  que faz feitiços para matar 23 ;

-  Quimbanda 24 - para curar doenças e   fazer o "Bindi" 25 ;

-  Tchipapi - para adivinhar na água e nos mantimentos;

-  Omutali - para adivinhar na carne de bois, cabritos e galinhas;

-  Hamba - para fazer chover.

A magia do "Cutaquela" é feita utilizando um chifre de palanca que espetam no chão, onde colocam uma pedra com carvão em cima. Dentro do chifre põem ervas secas e moídas e, sobre estas, uma brasa. Quando desaparecer a pedra em que assenta a ponta do chifre, morre a pessoa enfeitiçada.

A cerimónia do culto dos mortos, denominada Kuricutila, consiste num agradecimento aos mortos, por tê-los ajudado a curar um doente. Umas vezes matam um boi e convidam todos os parente e amigos da casa. Outras vezes fazem uma romagem ao túmulo do pai ou tio, levando consigo o gado que herdaram, sem esquecer as respectivas crias.

Esta cerimónia é feita no tempo seco, nos meses de Julho ou Agosto , pelo herdeiro de determinado rico, do qual tenha recebido muitos bois, e tem lugar no "Tchoto". Para tal festa, o herdeiro que a promove convida a família toda e os seus amigos. Uma vez todos reunidos, levam três dias em cantorias, sentados no "Tchoto". No terceiro dia o promotor mata um boi, indo depois ao cemitério, com os bois e as pessoas que se encontram na festa, com a ajuda das quais procede à sua limpeza. Entre o quimbo e o cemitério, a família do herdeiro come três ou quatro costeletas do boi abatido. No cemitério acendem uma fogueira onde assam as costeletas e, perto dali, numa árvore, colocam os ossos e um funil - dos que utilizam para o leite, nas cabaças -, querendo com isto dizer que quem comeu as costeletas e bebeu o leite - com que acompanham aquelas - foi o finado. De regresso e uma vez em casa, o herdeiro come a carne de uma mão de boi, após o que é plantada uma estaca de mulemba, onde prendem os chifres do boi abatido, os quais só desaparecerão passados muitos anos, depois da mulemba a que chamam "Tchipandja" - ter alcançado grande porte.

 O objectivo desta cerimónia, cujas preces são feitas pelo proprietário do "Eumbo" é, para além do agradecimento pela cura de alguém, obter de Deus e dos mortos  graças,  normalmente relacionadas com a agricultura e a pecuária. Quem vem a tal festa pela primeira vez, deve trazer consigo mantimentos e bebidas.

A cerimónia do boi sagrado ou boi soba, denominada "Djélua", tem como principal objectivo a petição da chuva  pelo que, a cor do boi tem de ser preta e branca, para significar o céu nublado.

Esta festa realiza-se todos os anos, nos meses de Julho e Agosto igualmente ou, o mais tardar, em princípios de  Setembro. Os ministros da "Djélua" são, pela ordem dignatária, o "Muné Hamba", ou rei da Djélua, a cuja direcção obedece o cortejo, o "Nthoma", ao qual pertence, de direito, dar um grito especial, manifestativo de que a festa do boi sagrado começou, e o "Nanthuma", que desempenha o papel de mensageiro, para avisar com antecedência as pessoas importantes da região, em cujas casas deverá pernoitar o cortejo, procedendo da seguinte forma: Avisa a primeira pessoa e aguarda em sua casa a chegada do cortejo, saindo na manhã seguinte à frente do mesmo a avisar a segunda e assim sucessivamente. Este mensageiro traz, sobre a cabeça, um penacho de aves carnívoras, distintivo característico  de antigos guerreiros, e unta a testa com pó de carvão para afastar todas as desgraças.

Reunidos os ministros e presente o boi sagrado, mata-se um cabrito e faz-se uma petição aos espíritos superiores, para que tudo corra bem. Seguidamente o rei da Djélua diz: - "Ide através do país, festejando. Comei o boi ou o cabrito que encontrardes mas, se encontrardes uma criancinha, que seja resgatada por um boi. Toda a gente deve venerar o boi sagrado e, quem isto não cumprir, seja decapitado. É severamente proibido maltratar a mulher de outrem." Depois  de dito isto, é dada a beber ao boi sagrado uma droga, com o fim de o preservar de doenças e, designados um rapaz e uma rapariga, de dez a catorze anos, para o conduzirem, e aos vitelos que se lhe juntem, durante o cortejo. É então altura deste sair, respeitada a seguinte ordem: - À frente, segue o "Nanthuma", com o seu grupo, depois, o "Nthoma" e a sua comitiva e, finalmente, o "Muné Hamba", levando este na mão um pequeno machado, um arco relaxado e duas flechas sem farpas. Ao sol posto acendem uma fogueira, querendo com esta simbolizar o fogo sagrado, onde lançam  remédios,  para purificar a região de doenças.

Depois desta cerimónia, o "Nthoma" entoa cantos que consistem em assobios, marchando seguidamente o cortejo para uma rocha, onde procedem a outro acto, que consiste em pôr na cara traços de giz, para assim mostrarem que o cortejo pertence realmente ao boi sagrado. Avançando então, o "Nanthuma" vai anunciar a uma das casas a chegada do cortejo. Ali chegado este, todos entoam um cântico, acompanhado pelo som de trombetas. O "Muné Hamba" e o "Nthoma" sentam-se à entrada principal do curral, vindo ao encontro deles o dono da casa, com o arco relaxado e duas flechas, e a dona da casa o giz ritual, feijão frade moído e fazendo-se acompanhar de três raparigas, as quais se ajoelham perante os ministros. Seguidamente a dona da casa faz, com o giz, traços na testa de cada um deles, cerimónia que confere ao cortejo o direito de entrar em casa e sem a qual o não poderiam fazer, bebendo  em  seguida Macau. Após isto passam à frente do cortejo os donos da casa, seguindo-se-lhes os ministros e o resto da comitiva, cantando em coro. Durante a recepção do Djélua, um grupo de homens dá três voltas completas à casa, dando assobios. Estes homens, enquanto não dão as voltas, levam na mão direita paus, representando assim a guarda de honra. O Macau é dado primeiramente ao boi sagrado, sendo em seguida distribuído conforma as categorias.

Seguidamente acendem o fogo sagrado, que arderá toda a noite e até à hora da partida do cortejo para outro ponto, não sendo permitido assar carne nesse fogo, à volta do qual dançam.  É morto um boi se a casa foi recentemente construída ou, caso contrário, um cabrito, destinando-se esta carne a contentar o povo. Do boi ou cabrito, o Nanthuma manda ao Hamba - ou Muné Hamba  - quatro costeletas, acompanhadas duma cabaça de Macau.

Durante esta cerimónia, além de cantarem em voz baixa, também dançam e tocam, entrechocando velhas enxadas e chifres, sem no entanto fazer grande barulho.

Acabado o percurso através da região, volta o cortejo à rocha onde parara no início, dali partindo alguns homens, com a missão de espiar, para verificar se o Hamba está em casa dado que, durante os festejos, não lhe é permitido sair da Embala onde deve permanecer recolhido, pedindo aos espíritos para que não ocorra qualquer mal. Segundo antigas tradições, se o rei saísse da sua Embala durante os festejos, os  sobrinhos teriam o direito de o expulsar.

Ao pôr do sol, o cortejo segue para um esconderijo e, à noite, o Muné Hamba retesa o arco, sinal de que são  permitidos os actos conjugais. Ali passam toda a noite a cantar e, ao amanhecer, o cortejo parte em silêncio para a Embala, sem aviso, não sendo acordado quem estiver a dormir. Ali estão reunidos todos os ministros que não participaram na cerimónia, para recepcionar o Djélua, cabendo ao Nanthuma avisar o rei com antecedência. Chegado o cortejo, as pessoas que o compõem param fora da Embala e à entrada principal do curral, onde então se procede à coroação do rei. Depois, o rei e a sua mulher vão cumprimentar os presentes, deitando a mulher um remédio sobre o boi sagrado, dando em seguida gritos característicos das mulheres quando querem manifestar alegria, entoando todos os presentes um canto que diz: " O boi sagrado bebeu remédio e aceitou os nossos segredos". Acabada esta cerimónia, o rei volta para sua casa e o povo passa ali o resto da noite, cantando até cerca das nove horas.

No dia imediato, os que seguiram o boi sagrado durante a festa cantam, formando-se então dois grupos - o do rei e o do Muné Hamba, ou seja: dos que participaram no cortejo e dos que não participaram nele. Por essa altura, o rei veste a sua indumentária  num lugar sagrado, enquanto, no batuque, são tocadas músicas guerreiras. Aparece então, trazendo na mão a zagaia e outros instrumentos e, na cabeça, o chapéu de rei, dirigindo-se para determinado local, acompanhado da sua mulher, para se sentar numa cadeira, ao pé da qual um homem sustenta um guarda-sol. À sua frente instala-se uma fila de raparigas que ainda não fizeram a festa da puberdade e, em frente o Muné Hamba outra, idêntica. As raparigas estão ajoelhadas, de mãos dadas e inclinadas e, no fim ou no meio de cada discurso,  levantam-se e vão ao encontro umas das outras. Chegadas ao meio, ajoelham-se e fazem uma vénia ao rei. Em primeiro lugar fala o Nanthuma e a seguir o Nthoma, que faz o relato do itinerário percorrido, falando por último o Muné Hamba, descrevendo a viagem e agradecendo aos espíritos dos anciãos   o regresso do cortejo sem qualquer novidade. Depois disto é feita a petição da chuva, pelo Nthoma, o qual se dirige ao rei nos seguintes termos: "Conduzimos o vosso povo através da região, agradecemos muito o efeito do fogo sagrado e, agora, como filhos e súbditos às vossas ordens, pedimos muitos mantimentos, muita prosperidade para a região, em gado e outros benefícios". O rei, então, agradece a boa direcção  do cortejo e promete ser fiel aos pedidos formulados pelo seu povo, depois do que continua a festa. Matam-se bois, canta-se e bebe-se.